segunda-feira, julho 26, 2004

2. O crime perfeito


O platonismo é uma das mais belas formas que o amor assume.
É belo na dor da distância do inatingível, mas mais belo ainda na sua pureza, na sua ausência de pecado.
É amar um ponto de luz perdido no céu. É sentir o teu cheiro na brisa. É ouvir palavras tuas nunca proferidas, trazidas pelo vento. É brotar de terra infértil. É uma réstia de vida no reino dos mortos. É tocar-te nas flores. Sentir arrepios pela tua presença ausente.
E foi quando o ponto de luz passou a carne e sangue que toda a sua beleza sucumbiu. Caiu por terra.
Foi na noite em que o Inferno me ofereceu o teu corpo quente, sujo de sexo e de paixão e de desejo, que este amor virou heresia.
Foi essa dádiva de pecado que corrompeu o meu platonismo.
Que me fez assassinar o mundo.
Que me fez morrer e continuar a amar-te.
E quantas vezes já me perguntei por que foste escolhido para a carne que destruiu o meu platonismo...
Quantas vezes me perguntei o porquê deste sentimento que trago comigo… Quantas vezes tive o papel da confusão nesta minha peça? Quantas vezes fui eu própria questão sem resposta?
Quantas!?
E cada vez que tento lavar a alma das nódoas que me foste deixando, o meu sangue ferve tanto de paixão que me queima a pele e escorre como uma cascata...
E à beleza da água associa-se então o terror do sangue quente que me queima e morre num charco sujo sob os meus pés. E a dor sai de mim e segue o sangue que o meu corpo rejeita. E é nessa plenitude que nasce a resposta que procuro. É nesse estado de alma, é nessa paixão sem heresia, que do meu peito voam pombas brancas, que da minha boca saem notas musicais, que dos meus olhos sai... amor.
Mas tu nunca me compreendeste... Nunca soubeste sentir como eu, descortinar o meu amor por trás do sexo que fazíamos como loucos.
Por isso vou tentando esquecer um pouco o tormento que tem sido trazer-te nos braços com tanto cuidado, com medo de te acordar desse sono calmo, dessa respiração profunda. Não vás tu saber dos meus crimes horrendos. De como mato um pouquinho de mim (ou de ti...?) todas as noites.
Esta é mais uma. Debruçada na janela, olhar pregado no céu. A noite está escura. Linda. E cheira tão bem…
Paredes brancas à minha volta. Paredes de um branco irritante…De uma brancura falsa. Tão falsa como o amor que dizias sentir. Falsa porque sobre elas jazem todos os meus segredos. Toda a sujidade que lhes prego. Toda a mágoa que sai de mim e se lhes cola pastosa. E ainda assim, lá estão elas. Brancas. Ridículas.
Mas hoje quero pintá-las com sangue. Com o meu sangue. Vão ficar bem mais verdadeiras. Porque é no meu sangue que flutua o que tenho de pior. É no meu sangue que a dor se espraia. É no meu sangue que está a podridão de um sentimento que se arrasta. Moribundo. Sem vida. (E eu bem procurei uma poção que lha devolvesse. Carne que o alimentasse.) Não posso ver aquela parede alva sem ter esta vontade assustadora de arrancar pedaços de mim. Da minha própria carne. Da tua? Da dela?

E caminho pela casa no escuro. E nos cantos vejo-me caída. Morta. Ensanguentada. As paredes já estão como eu quero. Bem sujas. Bem verdadeiras. E em cada pedaço de mim espalhado pelo chão, estão cravadas as palavras que não me soubeste dizer e que de tanto as sonhar fiz nascer secretamente dentro de mim. Mas tu não podes saber… Senão vais querê-las de volta. Vais arrancar-mas. E eu não vou aguentar… Estou tão fraca…
Muito sangue.
Não houve testemunhas. A noite estava escura. Não havia lua. Não havia estrelas. Tu não viste nada. Dormias profundamente dentro de mim. E eu, absorta a velar-te o sono, nem vi quando peguei nas tuas mãos adormecidas e me cortei aos pedaços.
Sangue e lágrimas. Dor e paixão.
O peito rasgado. As mãos sujas de sangue. O coração encolhido, atirado para o chão.
Tentativa desesperada de te arrancar daqui.
Amanhã quando acordar, as paredes vão estar imaculadas. E eu não vou estar morta. Espalhada pelos cantos. Foi o crime perfeito.

Até um dia, algures na eternidade, meu amor...