segunda-feira, julho 26, 2004

4. Um bar rotineiro


Empurrei a porta do bar como todos os dias no final da tarde. Estava cheio, mais cheio que o costume e eu estava sozinho, mais que o costume também. Porque se pode estar mais sozinho quando nada nos corre bem. O dia pesava-me nos olhos, só queria algo doce para beber, pagar para esquecer o dia inteiro e adormecer com um sorriso estúpido na cara, o mesmo de todas as noites, a velha rotina. “Dá-me algo forte, não quero o mesmo de ontem!” Chegou uma mistela azul num copo alto, pouco gelo, sempre tive os dentes muito sensíveis. Um trago e já se me aqueciam as entranhas, como era bom sentir que me estava a queimar, ou simplesmente sentir. Era tão bom...Fiquei sentado naqueles bancos altos junto ao balcão a olhar para um quadro mal pintado, provavelmente uma imitação bem melhor do que o quadro originalmente horrivel, não se via nada, mas as cores faziam-se amigas da minha visão esturpida. Um pontapé na porta, ou algo muito forte... era ela. Vinha com um ar de quem nada tem para fazer e então morre entediada. Como eu gostei do olhar de nojo com que percorreu as paredes sujas daquele bar rotineiro de bairro. Era diferente. Parecia ingénua. Avançou e foi para uma mesa no canto mais profundo da sala, tirou uma revista e começou a ler. Nem reparou no meu olhar perdido naquele corpo vagabundo. Mais um trago, e outro e outro... Estava quente aquela sala. Ela estava já com um copo de água na mesa. Um copo de água?! Quem bebe água num bar? Nem uma garrafa pediu, era um copo de água da torneira. Sorri e dei uma gargalhada estúpida. Ainda pensei que finalmente fosse reparar em mim, mas nem levantou os olhos da revista. Devia ser uma daquelas dirigida especialmente a mulheres mal-amadas, com aqueles diários de pessoas que nem sexo sabem fazer, que estupidez. Uma parvoeira pegada. Outro trago da bebida azulada. Já me sabia mal, mas fazia-me entrar em transe na pele dela. Senti-me enfeitiçado. A bebida já me fazia suar, não sei o que o gajo do bar lhe pôs mas tive uma repentina vontade de vomitar. Comecei aos arrotos e aí olhou para mim, já eu me estava a dirigir à mesa dela. A azia avançava de um modo anormal, estava já a queimar-me o esófago mas não podia deixar passar a oportunidade de a ouvir falar e olhar para mim. Afinal ainda nem sabia a cor dos seus olhos. Quando trocámos o sabor dos olhares entediados, parecia que lhe ia vomitar em cima. Soltei um grunhido, algo do tipo “oi”, nem me lembro bem o que disse. Ela estava totalmente escandalizada, sentei-me de repente ao lado dela. Só fui capaz daquele grunhido. Mais nada. Suava por todos os poros, estava nojento. Ela só dizia coisas estúpidas, tal como eu, seguindo-se uma parvoeira a uma estupidez. Cheguei a pensar que a água era vodka mas quando dei por mim a beijá-la não sabia a álcool. O meu bafo, esse tresandava! Fomos para minha casa, eu guiei, não tinha bebido muito, só estava com uma azia dos diabos. Chegámos e nem deu tempo para abrir a porta do carro. Agarrou-me a zona interna da perna na procura de uma  barra de ferro. Ela estava lá, dura, à espera. Não era ingénua afinal, era tudo fachada para me corromper os olhos.Subimos as escadas. Parecia levitar com tanto prazer, as minhas mãos nos seios dela, que loucura! Fizemos sexo. Os nossos corpos morriam nas mãos do prazer carnal. Cavalgou-me como uma louca e com tanta sede obrigou-me a repetir a dose. Os meus olhos iam-se perdendo no olhar cor de mel que me comia por dentro e por fora. As minhas mãos tentavam guardar um pouco do cheiro dela para sempre. “Já tinha saudades tuas.”  “Nunca me tinhas visto!” E veio o último orgasmo para ambos. Um delírio de prazer, uma alucinação, uma luz naquele sorriso, um toque meu no naquele corpo perfumado...


* * *

Acordei antes dela e fui beber água. Estava com uma sede dos diabos. Aquela noite tinha-me deixado sem fôlego. Quase temia a sede dela. Quando acordasse quereria mais, com certeza. Mas não. Acordou. Não me disse nada. “Bom dia, fofinha!” Nem uma palavra, só um sorriso amarelo. Vestiu-se, não me beijou e deixou o número dela em cima da cama. A porta bateu e eu fiquei perdido. Passei o dia a pensar se devia ou não ligar-lhe de volta, tinha medo que ela nem atendesse, a cara dela quando se tinha ido embora era de profunda satisfação. Talvez fosse uma simples prostituta e eu um homem sortudo. Liguei no final do dia, não fui ao bar de sempre nessa tarde. “Volta”. Desliguei. Não sabia o que dizer. E como me senti estúpido por aquela simples palavra! Não podia ter perguntado se ela estava bem? Que parvo. Estava tão assustado. Sentia falta do sorriso dela, da pele, dos olhos, da sede, da vertigem dos nossos beijos. Nessa noite, esperei sentado na sala a ver um daqueles programas “faça você mesmo” e só pensava em como a fazer minha. Tocaram à porta. Era ela. Trazia um beijo enrolado ao pescoço. O ritual repetiu-se. Os mesmos gemidos, as mesmas vertigens, a mesma loucura. Eu só pensava em possui-la por completo, não por uma noite, mas para o resto dos nossos dias cinzentos. “Fica comigo”, e o silêncio aniquilador de qualquer conversa furtiva. “Amo-te. Amas-me?” E ela ia embora. Sempre.

* * *
Todas as noites pareciam iguais. Ela aparecia sempre com o mesmo ar de gata esfomeada, com o mesmo brilho cintilante no olhar devorador. Eu estava já nu, com o tempo fui aprendendo que era mais fácil do que a obrigar a despir-me. Nunca gostei de me despir, prefiro que me dispam com beijos. Ela aparecia sempre com roupas mínimas. Rasgava-lhe as roupas e o corpo. E devorava-lhe a pele... A pele que nunca sabia minha. Estava sempre distante dos meus beijos doces, mas o sexo era sempre bom. Só faltava o seu amor, “faltava pouco”. Um berro, gemidos intermináveis, os orgasmos, o contorcer da perna dela e o morder do lábio inferior, o mesmo de sempre. E então fechava as mãos à volta do peito dela, num abraço apertado para não a deixar fugir mais. Os meus sussurros nas orelhas, o nosso olhar trocado em surdina, a minha respiração sôfrega...Um dia pareceu mudar. “Acho que estou apaixonada”. E eu sustentei todo o seu mundo.

* * *
Não fazia nada da vida, aquela miúda que me assombrava os dias para se tornar carne durante as noites. “Precisas fazer alguma coisa por ti!” E ela um dia foi. Disse-me por telefone que tinha arranjado um trabalho num loja de lingerie num centro comercial daqueles rascos. Não achei nada bem. Mas ela aceitou o emprego e começou no mesmo dia. Nunca queria falar sobre o dia na loja, limitava-se a cruzar pensamentos dela com os meus. Os “hoje estou muito cansada” tornaram-se autênticas pragas para os nossos gemidos. Menos vertigens, menos sede, menos sorrisos para guardar no céu. Era uma autêntica praga.