terça-feira, julho 27, 2004

5. A manhã seguinte


O dia amanheceu chuvoso.
Grossas gotas de chuva tocavam suaves melodias na janela.
Doía-me a cabeça, o corpo, o coração... doía-me o olhar ainda preso à imagem desconcertante do corpo dela sobre o meu.
Tudo o que acontecera chegava-me agora à memória em flashes rápidos, dolorosos. O telefonema, as minhas mãos no peito dela, toda ela em mim. Tinha nojo de mim mesma e daquela mulher que me violara a razão. Corri para a casa-de-banho a soluçar. Precisava de me lavar da sujidade daquela noite... Não fui capaz. A água que me molhava fazia-me lembrar a língua dela humedecendo o meu corpo. O vapor lembrava-me a sua respiração ofegante enquanto me amava.
Gritei até não poder mais, mas nem assim consegui silenciar as palavras soltas que me ensurdeciam ao ritmo da água que me queimava. Gritei mais e mais... gritei tanto até me doer a alma. Depois deixei-me escorrer com a água. Oxalá pudesse desaparecer pelo ralo também... Não sei quanto tempo fiquei ali assim. Lembro-me que tremia muito. A água ainda corria quente... tão quente que me ardia na pele. Mas tinha muito frio. Abracei os joelhos e chorei até adormecer. E a água corria, corria...
Acordei já de volta à cama. Ele amparava-me, carinhoso. "Já passou, meu amor". (Que desespero... estava apenas a começar!...) Quis contar-lhe tudo, explicar-lhe que nada mudara, que tudo não passara de um ímpeto, que... que... "Vá, descansa". E beijou-me a testa.
Naquele momento senti que lhe depositava nas mãos a minha vida. Que lhe confiava a minha alma. O cheiro dele atordoava-me. A pele arrepiava-me. Amava-o tanto...! Cobardia a minha nunca lho ter dito. Quando o senti assim, tão perto, tão "parte de mim" consegui. "Amo-te". "Também te amo". E encontrava nestas palavras o que mantinha viva...
Envolvemo-nos num abraço tão eterno, tão cheio de vida e de entrega, que desejei morrer-lhe nos braços. Não conseguia imaginar maior plenitude que a de ser uma estrela abraçada por um pedaço de céu... Quis guardar aquele momento para sempre, agarrar-me a ele quando me faltasse o chão, lembrar-me daquele cheiro no meu corpo, os lábios dele nos meus, os olhos verdes transbordando amor...
Ainda hoje me lembro da melodia cadenciada da chuva na janela.


* * *


Nesse dia não fui trabalhar. Não queria ser alvo da luxúria do meu chefe e estremecia só de pensar em ver aquela mulher de novo. Queria poder ficar para sempre aninhada nos braços dele. Ali nada nem ninguém me podia chegar. Nem o tempo. Naquele abraço, estava a redenção do pecado das nossas noites sujas, dos nossos gemidos, dos gritos, das feridas que fazíamos, loucos de prazer, um ao outro. Aquele abraço era a brisa divina que acompanhava o cântigo celestial da janela.
Ficámos assim, enquanto a chuva molhava o tempo lá fora.


* * *


Depois daquela manhã de revelação, nunca mais voltei à loja. Inventei uma gravidez e consegui ser despedida imediatamente e sem mais explicações.
Sei que embora não gostasse de me ver trabalhar ali, não gostou que tivesse voltado à rotina de sempre. Mas o tens-que-fazer-alguma-coisa-da-vida não voltou pela boca dele. Ecoava sim, mas na minha consciência, quase tão irritantemente como quando ele mo dizia.
Quis ser capaz de sair de casa, procurar um emprego melhor, ser respeitada. No fundo, sentia necessidade que ele me aprovasse... Às vezes até pensava que ele me tinha como uma prostituta. Afinal, era ele que me sustentava e eu em troca só tinha sexo para lhe oferecer... Não. Ele nunca pensaria isso de mim.
E pensar que aquele homem já me tinha enojado. Agora a ideia de não o ter comigo agoniava-me. Sentia um vazio que me preenchia e despia em simultâneo.
Aos poucos, fui esquecendo a noite com aquela mulher. Jurei que nunca mais a veria. Ele não saberia de nada... Nem tinha como saber, apesar de estranhar a minha súbita indisposição quando subtilmente começava a acariciar-me. Percebendo-o já excitado, inventava uma dor de cabeça, uma menstruação adiantada. Como entretanto voltara a trabalhar noutra loja, o o-dia-foi-cansativo acabava sempre por levar a melhor. Apesar de o desejar cada vez mais, tinha medo de voltar a sentir nojo. Não sei se dele, se de mim. Evitei-o ainda muitas noites.
Não o queria perder, mas a ideia de ser tocada de novo assustava-me tanto, que nada me excitava. Não sei se ele alguma vez me chegou a perceber as lágrimas... Nem sei se se apercebeu que os nossos beijos esfriavam, a sede amainava, o abraço já não era tão intenso. Até o peito quente lhe gelara.
E todas as noites enquanto ele dormia, chorava como uma criança, tal era o medo de ficar sem ele.
A nossa eternidade parecia ter fim.