segunda-feira, setembro 06, 2004

7. Pequenas coisas


Novo emprego. O terceiro desde que o conhecera. Era num clube de vídeo perto de casa. Costumávamos lá ir alugar filmes que víamos juntos enquanto chovia lá fora. Lembro-me que lhe preparava chá de caramelo (será que ainda gosta?) e me deitava no colo dele o resto da tarde.
Naquela altura precisavam de colaboradores. Inscrevi-me e umas semanas depois fui chamada à experiência. Era bem mais complicado que as lojas onde tinha trabalhado. Exigia mais responsabilidade, mais concentração. Tinha medo de trocar as capas dos filmes, de pôr uma comédia no expositor da pornografia, a pornografia na prateleira dos filmes para crianças. Enfim... Muito em que pensar e pouca paciência. As pessoas que lá entravam eram bem diferentes das da loja de lingerie. Apesar do pouco movimento, havia mais diversidade... Gostei. Via pessoas diferentes, pessoas novas, sorriam-me mais vezes, eu própria esboçava um sorriso aquando do típico gostou-do-filme. De vez em quando até conversava sobre os filmes com os clientes.
Um dia ele foi-me buscar. Entrou e pediu um filme, comportando-se como se não me conhecesse, na brincadeira... Sinceramente não sei se na altura gostei muito da surpresa. Não andava bem; o caminho sozinha até casa ajudava-me a relaxar antes de o enfrentar, as ruas enfeitadas de folhas secas acalmavam-me. Tive medo que aquele episódio se tornasse uma rotina e se estragasse, como as fitas pedidas muitas vezes lá no clube. Era como se ele me quisesse roubar o pouco espaço que ainda era só meu. Mas não lhe disse nada. Saímos de mão dada, brincando como adolescentes na rua, saltitando por entre as folhas douradas de outono.
* * *

Não sei se gosto destas recordações que aquele tempo me traz. Das folhas que ainda hoje teimo em não pisar. Agora quero esquecer. Esquecer por um instante os cheiros, as cores, os sons que ainda trago tatuados na pele. Esquecer o sofrimento. O desespero que me consumiu.
Cheguei a ferir-me em verdadeiros actos de auto-flagelação, em tentativas vãs de me ver livre das marcas daquela noite. Tudo me levava àquele chão, àquele tapete, àqueles gritos.
Imaginei que os poderia arrancar de mim, como arranquei a pele marcada pelas unhas dela, como tantas vezes arranquei os cabelos agarrados como cordas em momentos de desespero.
Comecei a fartar-me dos beijos dele, dos abraços que me sufocavam. Estupidamente, queria tê-lo perto, mas não me queria aproximar. Deixei-o ir tomando conta de mim… das minhas roupas, das minhas coisas, do meu corpo… da minha vida.
É estranho como por vezes desistimos assim das pequenas coisas. Desistimos de escolher uma roupa bonita para ir para o trabalho, desistimos de escolher um perfume que condiga com o tempo que faz lá fora, desistimos dos jeitos que damos ao cabelo e que ninguém repara (só ele…). Acho que naquela altura foi o que se passou… desisti das coisas e de mim.
O espaço que me dedicava foi invadido por aquela presença estranha que me atormentava sem cerimónia. Nada que fizesse aliviava o nojo que sentia quando me olhava ao espelho, nua de qualquer réstia de amor próprio.
Quando me sinto assim fujo. Tento sair de mim, fugir da minha própria sombra… Naquela noite foi o que fiz. Farta de mim e dele, saí mais cedo do trabalho e fui para casa. Sabia que não iria encontrá-lo. Troquei de roupa e voltei a sair. Já nem sei para onde fui. Andei perdida na rua e na minha alma.
Chovia muito… não tinha guarda-chuva, não tinha casaco. Só depois percebi que tinha saído de casa com uma camisa dele vestida. Só. Não sei quanto tempo andei assim pela rua, descalça e a tremer. Cansada, sentei-me no chão, à beira da estrada e chorei. Lágrimas quentes, chuva fria, céu escuro, automóveis, semáforos, pessoas, olhos (tantos olhos…!), risos, palavras. Mas eu não ouvia nada. Era como se estivesse tudo mergulhado no mais profundo silêncio. É impressionante como os problemas nos toldam os pensamentos, nos fazem perder a razão ao ponto de abandonarmos o corpo assim, quase nu à beira da estrada. Só hoje sou capaz de me lembrar dos comentários que na altura não ouvi, das gargalhadas que afinal me eram dirigidas, dos esgares de reprovação.
E saída bem do fundo do vazio… uma mão. Era ele. Abraçou-me e (sempre em silêncio…) levou-me para casa.
Discutimos muito nessa noite.
Mal entrámos em casa começou a gritar comigo. Eu só conseguia chorar, não sei se de vergonha, se de medo da rejeição dele. Disse-me que tinha ficado preocupado, que tinha passado pelo clube e que lhe haviam dito que eu já tinha saído há muito tempo. Tinha ido buscar-me mais uma vez. Tal como eu temia. Hoje, pensando bem na situação, acho que ele não gostou de me ver assim seminua à beira da estrada...
Parei de chorar. Comecei a gritar ainda mais alto que ele. Ignorei o olha-os-vizinhos-sua-doida. Estava a tirar um prazer imenso naqueles gritos. Vê-lo assim entre o aterrorizado e o agressivo dava-me mais vontade de gritar. Estava descontrolada, não sabia bem o que dizia; quase lhe contei da noite com ela.
Quando já só os meus gritos selváticos ecoavam na sala, parei. Agarrou-me, quis abraçar-me, eu não queria. Gritei mais. Debati-me, tentei livrar-me daquele (mais um...) abraço, da força que ele fazia, das tentativas de não me deixar fugir… Bati-lhe, mordi-lhe os braços até sangrar, arranhei-o. Depois desisti de novo. Como-se-desiste-de-nós-e-das-pequenas-coisas. Tentar livrar-me dele era mais uma pequena-coisa. Porque ele estava disposto a envolver-me assim para sempre. Toda a noite. Toda a vida. Talvez toda a morte. Encolhi-me e chorei escondida no peito dele.
* * *

No dia seguinte acordámos tarde. Acho que era domingo, como hoje. Ele acordou primeiro. Deve ter ficado a observar-me durante algum tempo. Quando abri os olhos, os meus cruzaram-se com os dele. Tinha estado a chorar. Tenho a certeza. Aquele brilho estranho, os lábios húmidos, o rosto cansado. Odiei-me.
— Temos que falar.
— Bom dia.
— Ah… Desculpa. Bom dia. Dormiste bem?
— Diz o que tens para me dizer, tenho pressa.
— Mas hoje é domingo amor…
Amor. Amor. Amor. Sempre aquela palavra. Nunca gostei que me chamassem amor. Somos todos amores uns dos outros. Não há casal que não seja amor um do outro. Isso irrita-me. E quando o A cai milagrosamente? “Mor”. Pior ainda.
— Então diz.
— Tens que ir a um psicólogo.
Psicólogo?! Lembro-me de ter vontade de lhe bater como na véspera. Não tinha coragem de assumir aquela noite perante mim, iria fazê-lo com um estranho?
— Não quero. Não preciso.
— Vai ser bom para ti amor. Vá, não fiques assim... Só te quero ajudar.
— Queres ajudar mas não ajudas nada. Estou farta que te metas na minha vida. Queres café?
— Quero.
Nessa manhã já não falámos mais sobre a ida ao psicólogo.

5 Comments:

Blogger Red Boys ESTAÇÃO said...

Gostei de te ler.
Vou voltar.

Bjs.

5:40 da tarde  
Blogger Miriam Luz said...

Eu e o Marco agradecemos!
Volta, claro! =)
Beijos

7:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

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